Há muito que o exercício da medicina como atividade liberal foi extinto. Há resíduos, mas subjugados ao domínio implacável da indústria da saúde. O país arrasta anos de conflitos com os médicos, essencialmente com argumentos de carácter laboral. As longuíssimas discussões, diatribes e pseudo-soluções, no âmbito do SNS, centram-se em “más condições de trabalho, remunerações e exaustão”. Ocasionalmente, juntam-lhe o “respeito”, apenas porque “o respeitinho é uma coisa muito bonita”!
Até há trinta anos era proibido falar em “negócio” no âmbito da saúde. Desde a década de 90 do século XX, a saúde foi-se transformando. De “Serviço”, transformou-se em “Negócio”.
Os trabalhadores ao serviço da saúde do Povo português eram diversificados e complementares, sendo os médicos os atores de maior realce… para o Doente. E foram eles os principais construtores do SNS, com a relevante e imprescindível colaboração dos diversos grupos profissionais. Entre os anos 70 e 90, construímos o original e verdadeiro Serviço Nacional de Saúde. Nesse tempo, o foco era o Doente. E o médico era-lhe dedicado.
Os serviços de saúde foram, discreta e progressivamente, transformados em “empresas de prestação de serviços” que também disponibilizam cuidados de saúde. Os hospitais públicos foram invadidos por gente cuja atividade nada tinha a ver com a doença e a saúde dos portugueses. Os critérios de gestão passaram a dominar os critérios clínicos. Planeiam-se e avaliam-se números e a qualidade mal importa. Passou a haver “profissionais de saúde” para todos os gostos, muitos incumbidos de funções e tarefas para as quais não estão qualificados, nem credenciados, mas são mais em conta! A usurpação de funções foi-se instalando por conveniência e imposição da gestão.
Na realidade, os médicos já não exercem uma profissão liberal, mas, sim, são subalternos dos gestores das empresas de saúde, sejam elas públicas ou privadas. Os designados “diretores clínicos” devem ser, essencialmente, “bons meninos” para os gestores. E não defensores dos Doentes e dos trabalhadores que aos Doentes se dedicam.
O foco passou a ser o Cliente e não o Doente! O funcionamento clínico das instituições hospitalares degradou-se e o caos instalou-se. Os trabalhadores deixaram de sentir os hospitais como suas “casas” e as “camisolas” deixaram de ser vestidas.
Quem é trabalhador da saúde em empresa pública, ainda terá contrato e sindicato, o que dá alguma protecção. O trabalhador médico numa empresa privada da saúde, raramente terá um contrato de trabalho, é admitido por compadrio ou necessidade do serviço – Uber-like! – e, sem qualquer justificação técnica ou disciplinar, pode ser impedido de trabalhar nessa empresa por decisão arbitrária súbita, sem diálogo, nem compensação. São inúmeros os exemplos de médicos que tendo trabalhado muito tempo – muito bem, fazendo-as crescer e ganhar prestígio – nessas empresas, foram surpreendidos pela “expulsão sem justa causa” apenas por critérios discricionários da administração.
O negócio da saúde é uma realidade instalada que utiliza a Doença como chamariz para interesses na gestão do que apelidam de “cuidados de saúde” e mais não são do que uma constante pressão para consumos clinicamente mal ou nada justificados. E, neste contexto, o médico deveria ter intervenção decisiva. Se o seu exercício fosse verdadeiramente o de uma profissão independente e eticamente respeitada. E tem havido tantos atropelos às normas e… boas-práticas!
E quando as complicações acontecem, a imputação de responsabilidades ao “profissional liberal” é a primeira reação da gestão! Escamoteiam as suas responsabilidades.
O médico trabalhador numa empresa de saúde privada como pode defender-se? E, tantas vezes, ajudar o Doente perante abusos de gestão?
Os sindicatos não intervêm em âmbito privado. A Ordem dos Médicos não é sindicato. A Justiça em Portugal é como todos sabemos. Como proceder?
João Meira e Cruz, cirurgião geral
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