Numa altura em que todos discutem sobre o SNS mesmo sem saberem do que falam ou sem experiência a não ser como utentes, resolvi por no papel o que eu gostava de ser um hospital onde pudesse trabalhar. A saúde baseia-se em prevenção, cuidados normais, cuidados agudos, cuidados continuados e cuidados terminais. Todos devem estar articulados, pois a obrigação constitucional é o Estado prestar todos estes serviços aos cidadãos. Vão ser criadas as unidades locais de saúde mas que só englobam algumas destas funções.
Hoje vou tentar dar a minha visão sobre como deveria funcionar um hospital equilibrado. Temos responsabilidades diferentes, sendo que ao Estado compete criar as instalações e equipamentos, bem como fornecer os meios para que funcionem. Aos profissionais, seja qual for a sua carreira profissional, compete organizarem-se para cumprir as suas funções e assumir os deveres e respetivas responsabilidades.
Como todas as organizações, têm de ter uma estrutura em pirâmide relativa que saiba ouvir e prever as situações e assumir as suas decisões. Prevejo uma presidência apoiada por um máximo de dois assessores, em que pelo menos um tenha larga experiência hospitalar. Abaixo funcionará um grupo de dirigentes responsável pelas várias funções hospitalares, sejam técnicas ou administrativas, que se encarregarão de transmitir à administração as informações necessárias ao bom desempenho do hospital. O dirigente principal abaixo da administração será o Diretor Clínico, pois será sempre ele a representar a instituição perante a lei, que se apoiará num conselho consultivo onde estarão representadas todas as estruturas profissionais pelas suas hierarquias. É claro que haverá grupos assistenciais, grupos meramente administrativos e outros técnicos e prestadores de serviços.
Vou começar pelos médicos que é o sector profissional a que pertenço e que conheço melhor. O representante médico seria o Diretor Clínico que seria escolhido entre todos os médicos, com categoria profissional superior, e reconhecido mérito e nunca por razões políticas ou outras. Cada serviço de especialidade terá um diretor nomeado pelo diretor clínico, ouvidos os médicos do serviço. Cada serviço terá autonomia e responsabilidade própria e modo de se articular com os outros serviços.
Hoje em dia, uma das grandes portas de entrada nos hospitais é a urgência e esta condiciona todo o hospital à sua volta, o que me parece profundamente errado. A urgência tem de ser um serviço como os outros e não viver do canibalismo dos outros para existir. Tem de ter regras que se imponham, que seja autónomo e que utilize as competências que não tem pela articulação com os outros da mesma maneira que estes se articulam entre si. Todos os seus elementos têm de ter competências básicas essenciais como qualquer outra especialidade.
Ninguém deveria ir a uma urgência, exceto em situação de emergência, sem ter contactado previamente o SNS24 e a quem corresponderia a responsabilidade de fazer uma triagem e enviar os utentes para onde deveriam ser atendidos, com a garantia de que efetivamente o serviço seria prestado em tempo útil. Se a situação fosse efetivamente para se dirigir à urgência, quem o recebesse já teria uma informação prévia e capacidade de o orientar para outras especialidades caso fosse necessário.
Quanto às especialidades, estas não seriam obrigadas a ter escalas de médicos diariamente destacados na urgência, independentemente de haver ou não serviço. Os serviços estariam organizados para funcionar independentemente da urgência, mas preparados para lhe dar o apoio necessário.
Nenhum profissional deveria pertencer a dois ou mais serviços como acontece agora, como por exemplos os anestesistas que fazem anestesia, cuidados intensivos e alguns VMER. A cirurgia, por exemplo, poderia ter uma equipe a que estava destinado o bloco operatório nesse dia e ter um elemento da equipa que seria chamado a ir à urgência para observar o doente e tomar as decisões necessárias. Se urgente, preparar a operação para esse dia, se para internar, proceder ao internamento, ou encaminhar para a consulta com data marcada em função da urgência do caso. Seguramente que haveria dias em que o plano operatório seria alterado, mas também haverias dias em que não se tornava necessário haver profissionais a percorrer a urgência sem ter nada que fazer.
É claro que isto implicava não só a formação de médicos unicamente para desempenhar esta função, mas também mudar a mentalidade médica que se baseou sempre neste modelo antigo de funcionamento. Penso que o benefício seria enorme e permitiria que cada serviço tivesse melhor rendimento dos seu recursos.
Aos serviços caberiam as seguintes funções: essencialmente assistenciais nos seus vários componentes; formativos, como função futura da sua existência; atualização e investigação (seja própria ou em colaboração com outras instituições).
Em todas as categorias profissionais tem de haver carreiras estruturadas com condições profissionais, remuneratórias e de desempenho que façam inverter a fuga para as instituições privadas e sirvam inclusive de concorrência leal com as mesmas. O fator principal será sempre o mérito, o qual será avaliado periodicamente.
Às direções dos vários serviços, sejam eles quais forem, caberá verificar as condições de trabalho e impedir sobrecargas que se refletiriam em menor qualidade e maiores riscos para todos. E isto aplica-se a todas as categorias profissionais. Qualquer acidente servirá sempre para ser averiguado para tentar evitar que se repita e avaliar as responsabilidades, mas sem carácter inquisitório, a não ser que haja dolo. Assim as ocorrências servirão sempre para a melhoria no desempenho e não como fator de ocultação.
As carreiras profissionais serão sempre organizadas pelas respetivas ordens, quando as houver, e pelas estruturas profissionais onde não houver ordens. Compete aos dirigentes de cada estrutura representá-la no tal conselho consultivo.
A relação com as outras estruturas assistenciais fora do hospital seria basicamente de dois tipos: os centros de saúde e os elementos de prestação de serviços que o hospital não teria disponíveis de momento. A linguagem e tratamento de dados entre hospital e centro de saúde obrigatoriamente teria de ter a mesma linguagem e acesso único à informação do doente – isto é uma questão de arquitetura informática e não dum supercomputador. Por exemplo um doente dum centro de saúde iria fazer um exame ao hospital e imediatamente o resultado poderia ser consultado nos dois locais e isto não colidiria com a proteção individual de dados que seria devidamente acautelada.
Um doente vai ao centro de saúde e diz que foi operado no hospital X, mas não sabe a quê. O médico teria acesso à plataforma desse hospital, ao serviço e recolheria os elementos necessários, se já não constasse da ficha clínica. Cada serviço teria os seus registos que poderiam ser acedidos apenas a quem tivesse permissão e necessidade deles. E isto aplica-se a qualquer serviço ou departamento do hospital, podendo ter sistemas de aviso sobre qualquer mal funcionamento ou necessidade de manutenção periódica.
E os custos? Em saúde há custos a curto, médio e longo prazo. A cada hospital seria atribuído um orçamento em função da população que serve e ao seu desempenho, bem como uma previsão de custos futuros, como por exemplo contratos de manutenção, aquando da aquisição de equipamentos. Fatores como o histórico ou suposição teórica apenas poderiam servir para benchmarking.
A base de cálculo das remunerações partiria sempre do princípio de trabalho igual-salário igual, nunca se permitindo que contratações externas trouxessem para o serviço discrepâncias entre contratados e pessoal com as mesmas habilitações, ou superiores, ganhassem menos que os contratados. Pode parecer inicialmente que haveria custos mais elevados, mas os resultados e benefícios a médio e longo prazo justificariam o investimento. Não podemos aceitar que o hospital com menos prejuízo é aquele que não tem doentes nem precisa de pessoas.
As instituições privadas baseiam a sua atividade nas lacunas do SNS e fazem contas para que cada ato tenha um valor real, não dê prejuízo e possa até dar lucro. No Estado não é eticamente aceitável que haja lucro com a saúde, mas também não tem de haver um prejuízo crónico, chama-se a isto fazer as contas certas e perceber a razão por que um procedimento em hospitais diferentes tem custos diferentes.
A organização dos Sistemas Locais de Saúde seria semelhante, não havendo predomínio do sector hospitalar sobre os cuidados primários, antes pelo contrário e trabalhando em equipe. A atual divisão nas zonas continentais teria de ser alterada em função das circunstâncias demográficas e os processos de alteração não poderiam deixar passar anos sem se fazer nada. Cada dia em que não se tomem as decisões será um dia perdido para o bem de todos, principalmente as populações e os que as servem e fazem parte delas, com os seus sacrifícios. Já passaram demasiados anos, demasiados estudos, demasiados diagnósticos e a cura nem se adivinha.
Estas são as minhas considerações e pensamentos de quem passou a vida desde 1967 a fazer parte desta teia.
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