As razões da polarização são conhecidas e a literatura tem dado boa nota disso, e vão dos ritmos sociais diferentes entre regiões do Ocidente – mesmo dentro dos países, de que é exemplo as américas urbanas e do Midwest – com uma tensão entre um progressismo e uma reação cultural conservadora em torno de temas morais (guerras culturais), como aborto, casamento entre pessoas do mesmo sexo, e a muito empolada questão da identidade de género, até questões mais materiais ligadas aos fluxos migratórios e ao choque cultural.

A questão cultural é a mais nodal neste debate. O multiculturalismo emergiu como um conceito que pretendeu explicitar as dinâmicas de encontro e hibridismo cultural resultantes da passagem à ‘aldeia global’, em decorrência de fluxos migratórios acelerados em direção ao Ocidente Norte. O multiculturalismo é a natural consequência de uma troca cultural e de uma diversidade cultural que caracterizava cada vez mais as sociedades ocidentais, em especial nas principais cidades europeias e da América do Norte. Eram os fluxos e refluxos humanos a comporem novos tecidos sociais. Mas as vozes críticas emergiram cedo, como Alain de Benoist, na década de 1970, grande arquiteto da Nova Direita europeia (embora filosoficamente muito mais complexo que a nova direita atual), Alasdair MacIntyre na década de 1980 e Samuel P. Huntington na década de 1990. Em comum tinham uma preocupação com os desafios do multiculturalismo para as identidades locais e para a identidade europeia de modo mais abrangente. Tais ideias viriam a ser retomadas por outros, já no século XXI, como Giovanni Sartori, que considerou o multiculturalismo como uma ilusão perigosa que subestima as dificuldades de integrar imigrantes de culturas muito distintas, Renaud Camus que propôs a teoria da grande substituição, que se tornou a base ideológica da Nova Direita pós-Benoist, e que assenta na ideia de que está em curso um programa político de substituição da população europeia por imigrantes islâmicos, ou Roger Scruton, que vê na imigração um problema para a estabilidade e sobrevivência das democracias liberais ocidentais, potencialmente levando à erosão da ordem jurídica e das normas sociais estabelecidas.

Este pensamento é contraposto pela leitura contra-hegemónica derivada do pensamento de Gramsci, que teve um impacto significativo nas ideias de ‘cidadania global’ e relativismo cultural. A visão gramsciana, que entende a hegemonia como a dominação cultural exercida pelas elites sobre as classes subalternas, ofereceu uma base teórica para a luta contra as estruturas de poder que promovem a homogeneidade cultural e a exclusão de vozes marginais. Nesse contexto, o multiculturalismo, para os pensadores gramscianos e pós-coloniais, não é visto como um fator de fragmentação social ou decadência, mas como uma resposta necessária à hegemonia cultural ocidental e ao imperialismo. O relativismo cultural, defendido por pensadores pós-coloniais como Edward Said e Amartya Sen, de forte inspiração pós-moderna, preconiza a necessidade de no seio do multiculturalismo não apenas dar voz e emancipar os ‘subalternizados’ da história e do imperialismo Ocidental, como adotar uma postura relativista face às características, normas e padrões sociais e culturais dos povos migrantes mesmo que entrem em confronto com as normas sociais das sociedades de acolhimento.

Daqui resultam duas visões tendencialmente incompagináveis: de um lado uma postura reacionária face à imigração e ao multiculturalismo, que advoga uma necessidade de assimilação absoluta às normas e padrões sociais por parte dos migrantes e refugiados, remetendo para a esfera da consciência e da liberdade individual a questão religiosa, e do outro uma leitura ultraprogressista que vê nas normais sociais hegemónicas uma forma de continuidade da opressão colonial e imperial do Ocidente, dificilmente admitindo que fluxos migratórios de grande escala colocam desafios naturais.

Ora, é essa tensão que entra no café central, através da televisão e do jornal depositado na mesa, e nas opiniões trocadas ao balcão, cuja natureza tendencialmente reducionista e simplista é canalizada por movimentos populistas. O pânico moral, alguns dados sobre crimes na imprensa sensacionalista, a presença do outro em contextos outrora marcados por uma uniformização extrema, concorrem para um crescimento de sentimentos antimigratórios.

No entanto, uma pesquisa que levei a cabo, e cujos resultados serão disponibilizados em 2025, mostra que entre as elites políticas, comentadores e outras figuras salientes, a quase inexistência de visões fortemente polarizadas, geralmente trazidas em chavões de uma esquerda antinacional e comprometida com a grande substituição e uma direita reacionária que não quer imigrantes. Pelo contrário, encontrou-se uma clara preocupação em evitar tanto o relativismo cultural extremo, que poderia justificar práticas contrárias aos direitos humanos, quanto a imposição rígida de valores ocidentais que ignora as particularidades culturais dos imigrantes. Há, portanto, uma consciência de que a imigração é necessária, que os povos têm o direito à sua identidade cultural, mas que acima de tudo vigoram os Direitos Humanos, a Constituição e o ordenamento jurídico inferior. É verdade que atores mais radicais casam com as guerras culturais; à esquerda desconsiderando desafios ligados à diferença cultural e vendo no capitalismo o reduto da exploração, e à direita vinculando narrativas de assimilação. Mas essas constituem mais exceções do que regra.

Todavia, é preciso ter presente de que entrando no café central, a discussão dificilmente volta a sair, e Portugal está a dar os seus primeiros passos nos grandes fluxos migratórios de diversidade cultural. Há lições a tirar e a aproveitar dos países que já fizeram esse caminho, uns com sucesso e outros com fracassos. Por isso, embora os atores políticos mais radicais tenham perdido a guerra cultural, desde logo dentro do seu campo político, a situação pode mudar rapidamente, caso Portugal não consiga realizar uma integração plena, coordenada, e garantística da dignidade de quem chega, da supremacia dos direitos humanos e reconhecendo as preocupações legítimas sobre identidade cultural local e nacional. Deixar cair o debate na polarização é entregar a questão imigratória às guerras culturais e aos populismos. Daí não virá nada de bom.

João Ferreira Dias, Investigador do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE (CEI-IUL)