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Estado viciado

Muitas cidades introduziram taxas turísticas com a justificação de que esses recursos servem para mitigar os efeitos negativos do turismo. Mas alimentam-no com elas.

Como combater a hipocrisia de um Estado viciado nas receitas derivadas das práticas que condena ou que deveria, em termos de política pública, procurar equilibrar e até alterar? Para políticos cada vez mais empurrados a agir no imediatismo e a pensar em ciclos eleitorais curtos, a resposta construtiva a esta pergunta é uma tarefa cada vez mais titânica, mas não é impossível.

Na sua constante busca por mais receitas fiscais, alguns governantes optam por tornar o Estado refém de um círculo vicioso que envolve a tributação de práticas prejudiciais à saúde ou ao bem-estar económico-social que, na verdade, pretendem promover. O exemplo mais óbvio e emblemático é o do tabaco. Ao mesmo tempo que gera milhões em receitas através de impostos, o tabaco impõe também um pesado fardo no sistema de saúde que precisa de lidar com as inúmeras doenças causadas pelo tabagismo. O lapso de tempo entre o benefício financeiro gerado e o prejuízo causado é o suficiente para que alguns decisores digam: “os outros que paguem esse custo”.

Este tipo de binómio simbiótico e perverso só muda quando a balança dos custos e benefícios se torna insustentável ou quando a pressão regulamentar, social e de imagem penaliza os políticos nas urnas. No caso do tabaco, os altos impostos cobrados sobre esse consumo criam, na verdade, uma dependência do Estado sobre estas receitas tão grande como aquela que afeta os próprios fumadores ao seu vício.

Para quebrar este paradigma, o Reino Unido aprovou uma lei que proíbe a venda de produtos de tabaco a qualquer pessoa nascida após 2009. Isto significa que muito antes de recolher os benefícios financeiros de uma poupança na saúde devido ao menor número de fumadores nas gerações futuras, esta decisão terá como impacto mais imediato a redução das receitas fiscais e a necessidade de combater o mercado paralelo com maior fiscalização que, também ela, custará mais dinheiro.

No turismo, está a desenhar-se uma situação análoga. Muitas cidades introduziram taxas turísticas com a justificação de que esses recursos servem tanto para mitigar os efeitos negativos do turismo quanto para desincentivar a superlotação dos espaços. No entanto, a aplicação prática destas taxas frequentemente revela outra realidade.

Em Portugal, algumas cidades que cobram a taxa turística utilizam-na para a promoção turística direta ou indireta, para a criação de mais eventos e atrações turísticas, alimentando assim um ciclo que aumenta o próprio problema que, aparentemente, se pretende mitigar. Amesterdão, cidade com a taxa turística mais alta da Europa, é um exemplo de uma abordagem bem diferente: o orçamento público para promoção e marketing da cidade é zero; não existem novas licenças para hotéis na cidade – apenas serão concedidas se um hotel existente fechar; estão a ser feitas tentativas regulamentares para reduzir o número total de voos autorizados no aeroporto da cidade – e uma coisa é certa: não se vai aumentar a capacidade aérea e muito menos construir um novo aeroporto.

Todas estas medidas fazem parte de uma estratégia a longo prazo que reflete uma visão determinada e coerente, contrastando com o caso bipolar de Lisboa: em 2024, será a terceira cidade da Europa com mais novas inaugurações de hotéis; a capacidade aérea da região será aumentada – seja por obras no atual aeroporto, seja pela construção de um novo mega-aeroporto – mas, pelo meio, anuncia-se a duplicação da taxa turística que, pelo volume e pelo peso crescente nas receitas municipais próprias, faz crescer a dependência do orçamento público relativamente à atividade que o Estado é chamado a equilibrar com as suas políticas públicas.

Na verdade, é como se estivéssemos todos – turistas, empresários, trabalhadores, habitantes e gestores públicos – viciados no turismo, dependentes das receitas que ele gera a vários níveis...e, ao mesmo tempo, “combatemos” e discursamos sobre os efeitos negativos a longo prazo que esse mesmo turismo tem e poderá vir a ter.

Este círculo vicioso de dependência revela uma enorme falta de coragem e de visão a longo prazo. Em vez de criar sustentabilidade, o verdadeiro foco está em criar e fazer crescer as receitas fiscais agora e a qualquer custo. E como sempre, quando chegar a fatura do vício, "os outros que paguem"... Até quando?!

Docente em Sistemas de Transporte e consultor em aviação, aeroportos e turismo