Neste quintal à beira-mar plantado, em que quase cada notícia é seguida da respetiva recomendação de painéis de comentadores sobre como deve ser digerida (com a família do ex-primeiro-ministro a ter lugar cativo nos dois canais de informação mais vistos), discute-se política como futebol. Tudo quanto não vem do meu clube, é péssimo, mau ou, no mínimo, pouco recomendável. É o sectarismo ao mais baixo nível que todos os dias nos servem.

Quem, porém, ousa levantar os olhos dos dedos dos pés, ainda salgados dos mergulhos de verão, e tenta perceber como são recebidas as decisões aqui tomadas nos fóruns em que terão importância, quem, em lugar de engolir as papas de serrabulho que lhes são servidas, se dá ao trabalho de mastigar cada garfada e sentir-lhe o sabor, quase sempre se surpreende com as diferenças.

A nomeação pelo primeiro-ministro (como sempre aconteceu) da nova comissária que deverá representar Portugal no "macrogoverno" que se desenha em Bruxelas é um caso paradigmático. A oposição em peso reagiu à notícia com ataques à "ministra da austeridade" (continuando, mais de uma década depois, a ignorar quem chamou a troika e por que motivos) e amuos por não ter sido consultada numa decisão que sempre foi assunto de petit comité. E todos continuaram a tomar a trica partidária nacional pelo mundo, permanecendo felizes na ignorância de como a notícia era vista nos fóruns do poder europeu — aí, onde importa, Maria Luís Albuquerque é vista como uma opção inteligente, que excede os requisitos e atira Portugal para um lugar de vantagem relativamente a Estados-membros bem mais poderosos.

Por cá, enchem-nos os ouvidos com a escolha de uma "passista que se vendeu à troika e financiou aos bancos com o dinheiro dos contribuintes". E pior, que é uma decisão pessoal e partidária (de novo, como sempre foi), em lugar de resultar de um entendimento alargado entre todos os partidos que nem para o que é relevante para a vida diária e o futuro dos portugueses consegue estar de acordo.

De fora, porém, ecoam reações diametralmente opostas. E o enquadramento é fundamental para as entender. Numa Europa a preparar mais um alargamento e que tem enfrentado dificuldades em conjugar ímpetos nacionalistas com os princípios europeístas, Ursula von der Leyen precisa de encontrar um colégio de comissários capaz de trabalhar acordos e encontros de vontades que permitam enfrentar desafios que vão da defesa à agenda ambiental, com uma relevância fundamental para o orçamento europeu, os fundos e a construção do novo quadro plurianual. E ao que tudo indica, terá de fazê-lo com uma larga maioria de homens, quando as regras ditavam que a paridade de género já fosse um dado adquirido na Comissão.

Feito o enquadramento, venha o currículo, que é de luxo no país, ainda mais se segmentarmos o género. Licenciada em Economia, mestre em Economia Monetária e Financeira, tendo acumulado sucessivos cargos de relevo nas mais relevantes instituições públicas de economia e finanças do país, incluindo a agência que gere a dívida portuguesa, foi secretária de Estado e depois ministra de Estado e das Finanças, foi fundamental na saída limpa de Portugal do resgate pedido pelo PS e construiu uma relação de confiança com as instituições europeias.

"Maria Luís Albuquerque é uma de apenas seis mulheres apresentadas como comissárias", tem formação e currículo na área de finanças e acumula "décadas de experiência" em políticas públicas económicas", escreve o Politico antes de concluir que isso põe a portuguesa como uma "boa candidata a assegurar uma pasta relevante na Comissão nessa área" ou, em alternativa, uma vice-presidência. Recorrendo às opiniões de dois diplomatas contactados, o site especializado aponta que Von der Leyen deverá compensar as poucas mulheres na comissão com cargos de maior relevo. E ao contrário do que se repete por cá, o papel de Maria Luís Albuquerque nas Finanças durante a implementação do programa de resgate da troika soma pontos positivos ao seu currículo.

Sendo as pastas económico-financeiras as mais disputadas e com os perfis dos candidatos que já avançaram a revelar maioritariamente essa ambição, Portugal pode ganhar vantagem em relação aos demais graças ao currículo de Maria Luís Albuquerque e ao brilho que a antiga ministra das Finanças tem em Bruxelas, adianta também o L'Observatoire de l'Europe, destacando-lhe ainda pontos extra pelo facto de ser mulher. "A escolha de Portugal permite a Ursula von der Leyen voltar a respirar", resume ainda o Les Echos. E o italiano Corriere della Sera arrisca mesmo que o facto de ser uma candidata será "um incentivo para abraçar uma pasta de maior importância, apesar de já haver um português escolhido para liderar o Conselho Europeu, António Costa".

"As prioridades que a Europa enfrenta requerem uma liderança forte e soluções inovadoras e a nomeação de Maria Luís Albuquerque como Comissária Europeia é um passo crucial para Portugal se afirmar na União Europeia, esperando-se que a sua vasta experiência em finanças e política traga valor à Comissão", interpreta ainda a publicação francesa acima citada.

E aqui? Descubra as diferenças. Aqui, Maria Luís é "desprovida de qualidades" e "não tem currículo" que sirva o cargo — para quem reescrever a história é um passatempo diário.

Diretora editorial