Quem vai seguindo a atualidade nacional, só pode questionar-se se lhe terá escapado alguma coisa. Talvez tivesse estado inconsciente e o tempo de governação da AD não seja afinal de quatro meses, onde se contam várias soluções para cortar impostos, uma maior atenção aos jovens, medidas concretas para estimular a economia e um esforço de resolução de problemas que se arrastavam há anos, mas dure afinal há longos anos e some um ror de más decisões e opções políticas erradas. É a única explicação para o profundo mal-estar social que nos mostram, para um nível de revolta que não pode explicar-se pela ação de quem se sentou aos comandos do país há pouco mais de 100 dias.

Parece que já se esqueceu o legado destrutivo de quase nove anos de Costa e companhia e que é Montenegro o pai de todos os nossos males. É o que intuirá qualquer incauto observador que se cruze com relatos de tanta contestação e tamanha inflexibilidade por parte de todos os que se cruzam nos caminhos da governação. Dir-se-á que acordaram agora os que viveram recolhidos e calados a degradação que se foi instalando nos serviços públicos, multiplicando-se agora em exigências e reivindicações. Antes podia haver alguma lamentação, mas não era bem contestação, era quase uma reação envergonhada perante a governação da geringonça e a subsequente maioria socialista — que nos trouxeram três recordes de carga fiscal e a maior coleta de impostos que alguma vez se cobrou às famílias portuguesas —, como quem não quer destoar das bandeiras coloridas do otimista de serviço.

Nesse tempo em que nem se abria a porta aos sindicatos para negociar a recuperação da carreira dos professores, os complementos salariais para as forças de segurança ou melhores condições para médicos e funcionários públicos, não havia eco de tanta insatisfação. Nesse tempo em que só os salários e pensões mais miseráveis subiram, e por pressão eleitoralista, não havia o queixume a que hoje assistimos. Nesse tempo em que se anunciou "habitação para todos até 2024" mas em seis anos não se chegou a entregar 1.500 das 26 mil casas prometidas; nesse tempo em que se garantia que cada português ia ter o seu médico de família mas em vez disso se somou quase 50% mais famílias sem assistência em saúde e se implodiu o SNS; nesse tempo em que se ergueu a bandeira das creches gratuitas para todos mas nunca se chegou perto de ter metade dos lugares necessários, não parecia existir a rejeição à governação que hoje se pinta.

E no entanto, o orçamento que ainda vigora foi escrito por António Costa e Fernando Medina — exigência do Presidente Marcelo em nome da estabilidade, lembra-se? O que vivemos na saúde, na educação, na habitação, na função pública, na economia, é consequência direta das decisões tomadas e das políticas seguidas pelos três governos liderados pelo PS, com Pedro Nuno Santos na linha da frente dos delfins de Costa — ainda que pareça difícil acreditar que o hoje reivindicativo líder socialista que rasga as vestes por uma governação "amiga do povo" teve nas mãos as pastas das Infraestruturas, da Habitação e dos Transportes durante anos, sem resultado que abone a seu favor, e viveu por dentro os executivos que durante quase uma década decidiram, sem oposição que se visse, o que fazer de Portugal.

Não é possível tamanha falta de memória, mesmo sabendo o que custa digerir derrotas eleitorais — que o diga a oposição em Lisboa, que ainda deve lacrimejar todos os dias ao acordar com Carlos Moedas presidente, revivendo o trauma a cada casa que se abre para uma família, a cada evento de sucesso como foi a Jornada Mundial da Juventude, a cada iniciativa que dá provas da sua bondade como a Fábrica de Unicórnios ou o alargamento da rede de cultura com os teatros a nascer mesmo em cada bairro e o Museu do Design a abrir portas nos Paços do Concelho.

Não fosse o que vão indicando as sondagens — o empate técnico entre os dois maiores partidos continua lá, mas a AD a governar tem aumentado a vantagem em relação aos socialistas em oposição histriónica; da mesma forma que se mantém a expressiva maioria à direita, apesar da insistência febril das esquerdas em construir frentes de ação — e era até caso para duvidar da sanidade mental dos portugueses, que votaram pela mudança quando viviam num mundo cor-de-rosa.

Uma coisa é certa: pela primeira vez na história um primeiro-ministro merece mais a confiança dos portugueses do que o Presidente. Como é que isto traduz a agitação social que nos mostram? Talvez António Costa, ainda antes de chegar à cadeira de presidente do Conselho Europeu, nos consiga explicar com a ajuda dos seus convidados António Vitorino, Fernando Medina, Mário Centeno. Certamente irá tentar.

Pequenos irritantes

  1. A constituição como arguido de Fernando Medina na operação Tutti Frutti (são já 50 pessoas na lista...) é uma mera vírgula processual em mais um caso de proporções épicas que promete acabar no lava-pés. À falta de argumento, põe-se no pelourinho mediático quem se quer queimar. Concorde-se ou não com as políticas, goste-se ou não dos protagonistas, ninguém ganha nada com acusações palermas e suspeições hipócritas e ocas, como a que pende sobre o ex-ministro e ex-autarca. Casos destes só servem para alimentar o populismo que se diz querer aniquilar. E não haja ilusões: estamos todos sujeitos a ser apanhados na fogueira.
  2. "Se questionarmos as eleições na Venezuela, temos de questionar todas", disse ontem Paulo Raimundo, já depois de ter visto no resultado em que nem o amigo Lula, no Brasil, acredita "uma grande demonstração da participação do povo venezuelano na eleição dos seus órgãos". Como quem não vê a repressão e a miséria com que o comunismo asfixia o país, como quem não sabe que o regime de Maduro já caiu de podre, elogia cegamente um líder e um regime criminosos e um resultado fraudulento. E se lhe perguntam sobre o sangue que tem corrido nas ruas venezuelanas, responde que com Gaza ninguém se preocupa. É o PCP a ser o seu próprio coveiro.

Diretora editorial