Em 1990, a mãe da estrela maior da NBA contactou-o para avisar que pretendiam que apoiasse publicamente o candidato democrata na Carolina do Norte ao senado dos EUA, o afroamericano Harvey Grantt.

Ainda que o opositor Jess Helms fosse um feroz conservador em questões sociais e estivesse nos antípodas do combate ao racismo ou das lutas pelos direitos das pessoas LGBT, Jordan optou por posicionar-se… não se posicionando. Como nos recordou a série “The Last Dance”, numa brincadeira de autocarro com os companheiros Scottie Pippen e Horace Grant, Jordan, que já tinha a sua linha de calçado desportivo, atirou que não se metia na política porque “os republicanos também compra[va]m ténis”.

Haverá certamente quem discorde da atitude. Haverá quem suspeite que o lucro se sobrepôs aos princípios. Haverá ainda quem veja na prudência cobardia. Haverá inclusivamente quem defenda que, na altura, deveria ter sido administrada a extrema-unção moral àquele traidor de causa e de classe.

Jordan, que até doou dinheiro à candidatura de Grantt, resistiu. Embora os tempos fossem outros, sem #BlackLivesMatter, sem #MeToo, sem #FridaysForFuture, pagou o preço de não embarcar em modas (por mais legítimas e justas que sejam). Na verdade, como explicou à própria mãe, por que raio teria de vir a público, por sua conta e risco, fazer loas a alguém que nem sequer conhecia?

Hoje, semelhante heresia acabaria com a devida correção nas fogueiras mediáticas e algorítmicas. Vá-se lá saber porquê, personalidades com notoriedade (e até desprovidas dela) e organizações de todas as naturezas são “forçadas” a tomar posição. Sobre tudo. A dizer o que pensam – quando não raras vezes nem o fazem. A achar muitas coisas e a presumir outras tantas. Sem que se entenda bem este frenesim, a sinalização de virtude foi promovida a modalidade olímpica.

Quais ratos na incessante roda digital, julgamos incontornável fazer considerações, declarações de apoio ou violentas demarcações a respeito do tema que nos parecer mais candente a cada 24 horas. Acreditamos que alguém, além dos nossos benévolos progenitores e dos nossos estimados amigos, não dormirá bem sem saber a opinião do Harari que reside em nós.

Essa fúria performativa, assente em concepções binárias e maniqueístas do mundo, alimenta o ego de narcisos frágeis e sacia “followers” acríticos, mas também expõe indivíduos intelectual e animicamente impreparados para a crueldade dos detratores. Nesta avidez por “engagement”, viralidade e, acima de tudo, aceitação, pertença e reconhecimento, esquecemo-nos de que somos pequenos elementos deste espetáculo constante e crescente proporcionado por gente que, apesar de ligada ao mundo, vive só.

A intemperança própria de quem tem horror ao vazio (e a tudo o que de magnânimo e perverso existe nessa esconsa realidade) resulta na parafernália de “achismos” e na profusão de “tudólogos”, que não perdem uns minutos a refletir sobre o que quer que seja porque os consomem todos a reproduzir perceções e interpretações acerca de tudo o que os rodeia, caindo nas armadilhas da superficialidade, da contradição e do excesso.

Pode parecer surpreendente, mas não temos de dispor e exibir certezas sobre os assuntos mais complexos, carregados de nuances históricas, técnicas, científicas ou filosóficas, revestidos por especificidades que nos são estranhas, balizados por códigos morais difíceis de apreender e com um sem-número de ângulos mortos impassíveis de serem captados a partir dos confortáveis cadeirões em que fazemos ativismo para alívio de consciência.

A não escolha de Jordan em 1990 pode constituir uma lição para todos em 2024. Impopular, é certo, mas profilática. É que, como dizia Millôr Fernandes, mais vale estar calado e passar por idiota do que abrir a boca e acabar com as dúvidas.