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O crime da liberdade. Uma mãe imigrante, um bebé sem nome permitido

Não é a imigração que está a gerar o crime. É quem a devia proteger.

A imigração é algo que está muito caro. E há muitas pessoas a confundir refugiados com imigrantes e com grupos étnicos. Há diferenças, embora precisem ser explicadas. A imigração também anda muito associada ao crime e ao ato criminoso. Tudo errado.

Por um lado, o imigrante está “caro” no sentido de estar a ficar muito gasto no pensar dos portugueses pouco empáticos; por outro lado, caro porque ser-se não nativo fica mais caro num simples ato de querer um nome num notário ou similar entidade em Portugal. E criminoso na mentalidade de quem não permite a liberdade aos imigrantes que entram no nosso país à procura do que os seus países de origem não lhes puderam oferecer. De uma prisão entram noutra.

Observei, há pouco tempo, algo que me emudeceu o coração, mas não o sentido crítico: no Instituto dos Registos e do Notariado de Lisboa, uma mãe imigrante – mais me aparentou ser refugiada pela apresentação fragilizada – sentou-se com um sorriso estampado na face pouco escondida pela abaya. Pelo véu. Parecia que tinha conseguido passar uma fronteira que a “esganava” antes e estava em território seguro e são. Trazia um bebé nos braços e pretendia registar a criança. Dar-lhe um nome, um reconhecimento, um direito humano que lhe é inerente.

Prontamente a senhora que a atendia “sacudiu-a” e só lhe falava em português, dizendo que não podia registar a criança a não ser que a mãe falasse português, e que não voltasse até aprender a falar. Assim, com brutalidade na voz. Por lei (ou rei), não é mandatório falar português para tal ato e direito. Tem de, pelo menos, ter o documento do registo de nascimento (onde nasceu) em versão inglesa ou francesa ou espanhola, portanto, se não tiver certidão em nenhuma dessas línguas.

A senhora “do véu” continuava tão sorridente, pois falando na sua língua-mãe não entendera que acabara de ser enxotada. E eu observava, sentada numa cadeira do seu lado esquerdo. Quis intervir com aquela justiça que me define, mas ali ia parecer em vão. E para um véu não deve haver algo “em vão”.  Emocionei-me porque a senhora estrangeira tentou explicar, com voz baixa e calma, o que precisava e levantava a criança como forma de tradução. Percebi que queria apenas registar o nascimento do menino. Ser mãe, ser criança fugida de um provável país de matança de mulheres e bebés (como o caso do Irão), com meia face à mostra, não chegou para a ‘tradução’ de um rogo.

Veio uma outra senhora, do notário, explicar, em inglês calmo, que ela precisava de alguns documentos em falta (os tais traduzidos, pelo menos em inglês) e alguém que a ajudasse a traduzir para português o que pretendia. A mãe voltou a içar a criança — estava acompanhada de uma parente que se manteve calada. Nisto, a senhora que deveria estar a cumprir o papel de mediadora cultural enquanto traduzia (como é de lei, ou deveria; ou simplesmente como sinal de nação evoluída que devíamos ser, porque quem não inclui, não é do primeiro-mundo), perdeu a calma e também a enxotou, dizendo, em inglês, algo como "o tempo terminou, volte com alguém que traduza". Ainda trocou algumas palavras em português com a primeira funcionária, donde entendi o contexto que ali decorria.

Ora se estava a portuguesa mediadora a traduzir – ali tinha sido chamada para isso – porque houve uma espécie de "visita na prisão" com tempo contado? Porque não a auxiliou logo ali? A mãe levantou-se com o mesmo sorriso (o que me surpreendeu) parecendo não ter entendido nada e, afinal, continuava "presa", sem conseguir dar um nome válido (registado) à criança, que tanto pediu. Sem conseguir ter liberdade. E ainda por cima sendo necessário ter a criança registada no país onde reside, mesmo que tendo nascido fora.

Esta criança poderá vir a tornar-se uma boémia? Refiro isto porque há pouco tempo li sobre a definição de "boémio" com uma associação de sinónimos muito intrigante (e não muito adequada) e que passo a traduzir do inglês: "cigano, nómada; pessoa, músico, artista ou escritor que vive de forma espiritualmente livre (espírito livre) e acredita na verdade, na liberdade e no amor". Ora, se um boémio é todo este conjunto de etnias, modalidades diletantes e profissões artísticas, se ser boémio é ter a boa fé na verdade, na liberdade e no amor... então somos todos boémios. Mas, não seremos todos nómadas (e traduzi "nómada" da forma mais simpática possível), certo? Porque aparece esta definição a juntar realidades que não se unem?

Percebi que, por essa definição, sou uma boémia porque sou escritora. Percebi que muitos de nós somos boémios pela crença nos bons valores, como o da verdade. Percebi que crianças a quem se nega um nome registado serão, no mínimo, boémios. Isto sim, é um crime: negar direitos humanos básicos. Não é, portanto, a imigração que está a gerar o crime. É quem a devia proteger, na maioria dos casos.

Professora universitária, investigadora científica e escritora

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