O fim do consulado de Lucília Gago começa oficialmente com o anúncio do nome do próximo Procurador-Geral da República, Amadeu Guerra. A forma como a notícia está a ser recebida pelo Ministério Público, pelos partidos e pelos fazedores da opinião pública demonstra a urgência em voltar a credibilizar o Ministério Público aos olhos dos cidadãos, tentando dar-lhe o que tanto lhe tem faltado: hierarquia, responsabilização, comunicação e prestação de contas ou, numa palavra, transparência.

No início da década passada, o filósofo Byung-Chul Han afirmou que vivemos numa “sociedade da transparência”. De facto, nenhum outro tema parece ser hoje tão relevante na esfera pública como o da transparência, «objecto de uma reivindicação efusiva». Curioso que tenha sido a Procuradora-Geral, agora de saída, a lembrar este cenário no seu discurso de tomada de posse, em outubro de 2018.

Malogrado reconhecimento, Lucília Gago manteve-se praticamente em silêncio nos últimos seis anos, não concedendo entrevistas aos órgãos de comunicação social. E, quando finalmente falou, ei-la: recusando o estrelato, chutando com fulgor as críticas e os críticos, reclamando a pureza do MP, agitando o fantasma de uma campanha orquestrada destinada a enfraquecer aquela magistratura, atirando as culpas da gestão dos recursos humanos para as procuradoras grávidas e mães, julgando normal que mais de 10 mil telefones estejam sob escuta e rejeitando perentoriamente qualquer envolvimento de procuradores nas fugas ao segredo de justiça. Lucília Gago tardou, mas quando chegou foi com estertor. Há duas formas de olhar para as intervenções da PGR: ou lamentarmos que não as tivesse feito mais cedo, ou concluirmos sarcasticamente que mais valia ter continuado em silêncio até ao fim. Nenhuma das visões abona a seu favor.

O que mais surpreendeu no discurso da PGR, e o que será a mais pesada herança de Amadeu Guerra, foi a sua total e absoluta desresponsabilização. Da mesma forma que algumas pessoas estão para além da vida, também Lucília Gago achou que o Ministério Público estava para além da accountability. De tudo, Lucília Gago apenas se assume responsável por escrever o parágrafo que acabou por colocar António Costa no Conselho Europeu. Mais nada. Violações do segredo de justiça? São os advogados de defesa que, como se sabe, têm todo o interesse em arrastar na lama o nome dos seus constituintes. Milhares de pessoas sob escutas? Só assim pode (ou, melhor dizendo, sabe) o MP investigar... Cidadãos escutados consecutivamente durante quatro anos? Infeliz, mas a complexidade assim o exige. Suspeitos detidos durante dias para aplicação das medidas de coação? São os oficiais de justiça e as suas greves. Promoções do Ministério Público rechaçadas por juízes de instrução criminal e das Relações? São “apenas” leituras diferentes dos indícios… Perante tudo isto, bem se compreende que o nome do sucessor de Lucília Gago esteja a ser encarado com alívio. É uma boa escolha!

O currículo de Amadeu Guerra e a unanimidade que está a colher falam por si. O trabalho que fez no DCIAP, iniciando ou concluindo inquéritos altamente mediáticos, como a Operação Marquês, a Operação Fizz, o Caso BES, ou a Operação Influencer, são testemunhos de competência e de uma liderança decidida, capaz de colocar o DCIAP em ordem. Amadeu Guerra tem autoridade e capacidade de diálogo, mas, acima de tudo, preserva a independência que é garante da separação de poderes e da imparcialidade.

Cumprindo genericamente com os dez critérios apontados pelo 50 + 50 do Manifesto, talvez o grande defeito do futuro PGR seja, justamente, provir daquela magistratura. Isto para aqueles que, como eu, preferiam ver alguém de fora do Ministério Público ascender ao topo da hierarquia, acabando-se com as escolhas de dimensão corporativa. Em todo o caso, e considerando as idiossincrasias políticas do nosso tempo, o que valerá mais? Um juiz alinhado ou um procurador independente?

A esta (curta) distância, Amadeu Guerra perfila-se para ser o oposto de Lucília Gago. Enquanto esta representa a agonia de um MP que se apequena à luz da opinião pública, aquele traz a esperança num Ministério Público que volte a ser respeitado e respeitável. O futuro PGR recebe um MP desmotivado, desorganizado, com excesso de trabalho e sem visão estratégica, e tem agora a difícil tarefa de o reerguer, garantindo o respeito pelos direitos fundamentais, o cumprimento dos prazos processuais, a criação de condições físicas, logísticas e humanas para o desenvolvimento da sua atividade, entre tantos outros desafios.

A primeira grande qualidade de qualquer titular de cargo público, que esperemos que Amadeu Guerra tenha, é a capacidade de autocrítica, ou seja, ser capaz de olhar para a instituição que dirige e perceber onde estão os nós górdios e as dificuldades. Depois, claro, é preciso encontrar estratégias para as superar.

Voltando ao discurso de tomada de posse, e talvez antecipando aquilo que viria a ser o essencial do seu mandato, Lucília Gago explica que o «mérito do desempenho do Procurador-Geral da República não lhe pode ser exclusivamente imputado, como se de uma figura providencial e messiânica se tratasse». Aceitando que a interpretação valerá também para o demérito, visto está que tivemos ao leme do MP uma Procuradora-Geral que, não sendo providencial nem messiânica, se achou inimputável e imune à autocrítica. Amadeu Guerra não será com certeza um PGR messiânico e providencial, mas se for capaz de autocrítica e de autorresponsabilização, de acabar com certas agendas internas, de prestar contas e de comunicar com os cidadãos, então já terá alcançado muito e muito mais que Lucília Gago.

Como se disse, o afastamento de Lucília Gago não resolve todos os problemas do Ministério Público. Apesar de o nome de Amadeu Guerra ser uma boa notícia, o poder político tem de deixar de ter medo do MP e pensar (e agir) em reformá-lo. Na certeza, porém, de que resolvendo os problemas do MP não se resolvem os problemas da Justiça. Só se resolveu o maior problema da Justiça. Em todo o caso, tem de se começar. E é por aí. É por aqui.


Nuno Cerejeira Namora,

Advogado Especialista em Direito do Trabalho