É médica de família há 28 anos e integrou uma das unidades Alfa – o embrião das USF – em Fernão Ferro. Como foi essa experiência de estar envolvida num modelo organizacional que foi precursor da reforma dos cuidados de saúde primários (CSP)?

O projeto Alfa era uma novidade e para mim, como médica, era fascinante saber que estava a integrar uma unidade com mais autonomia e que permitia o trabalho em equipa: médico, enfermeiro e administrativo (secretário clínico). Desta forma era possível prestar melhores cuidados de saúde à população. No centro de saúde clássico, o médico estava mais isolado, o sistema de organização era muito mais rígido. Para mim, foi muito estimulante ter integrado o modelo Alfa.

Como era ser médico de família nessa época?

Quando entrei para a especialidade, esta ainda não se chamava Medicina Geral e Familiar (MGF), mas sim Clínica Geral. Éramos confundidos com médicos indiferenciados, ou quando muito, considerados aqueles especialistas que não tinham conseguido ter notas para outra. A formação específica era de apenas três anos. Mas, no meu caso, optei por esta área por convicção, porque percebi a beleza de ser médico de família e poder acompanhar as pessoas ao longo da vida, quer na doença quer na saúde, em diferentes idades, e dentro do seu contexto familiar, laboral, social.

Chegaram a ser Regime Remuneratório Experimental (RRE)?

Não, porque enquanto o Alfa era um projeto de equipa (médicos, enfermeiros e secretários clínicos), o RRE era um regime que só contemplava a classe médica. A equipa de Fernão Ferro era muito unida e achávamos que não fazia sentido que apenas um grupo profissional fosse remunerado consoante determinados objetivos. Isso acabaria por colocar em causa a nossa união. Ao não aderir ao RRE, mantivemos alguma autonomia, mas ficámos um pouco esquecidos, porque houve um desinvestimento por parte das entidades superiores relativamente a quem não quis adotar o RRE. O que se seguiu, mas apenas ao fim de uns anos, foi a transição para USF modelo A e, posteriormente, modelo B. A USF FF Mais pertenceu ao grupo das primeiras USF a nível nacional.

“… notou-se um desinvestimento na reforma dos CSP por parte do Governo, independentemente da cor política”

Entretanto, após esse grande investimento nas USF, os anos foram passando e a reforma foi estagnando… Sentiu frustração?

A equipa preferiu estar mais focada em responder às necessidades das pessoas

e também em garantir que houvesse um bom ambiente na equipa… Além de se prestar bons cuidados de saúde à população, era fundamental que ninguém se sentisse ultrapassado pela sobrecarga de trabalho e pelas dificuldades inerentes a essa estagnação. Mas, de facto, notou-se um desinvestimento na reforma dos CSP por parte do Governo, independentemente da cor política. Como equipa aprendemos a ‘boiar’, sabendo que o apoio por parte da Tutela nem sempre existia…Esta estratégia fez a diferença, porque permitiu-nos manter as dinâmicas internas, evitando-se o desânimo total.

Na sua opinião, por que nem sempre havia esse apoio por parte do Governo?

Não sei, são as circunstâncias… Tenho dificuldade em avaliar a governação como um todo, porque sempre estive focada na comunidade, na atividade clínica.

A reforma foi inclusive considerada um case study na OMS…

Sim, e até recebemos visitas de estrangeiros que queriam conhecer melhor o que era feito no país. Na USF FF Mais, em Fernão Ferro, recebemos a visita de representantes da OMS e da OCDE para estudarem o modelo de funcionamento no terreno. Apesar das dificuldades ao longo dos anos, o modelo USF continua a ser o mais adequado, mesmo que, obviamente, todas as equipas sejam diferentes, cada uma tem o seu próprio ADN. Existem unidades mais maduras, outras muito jovens…

“O médico, enfermeiro ou secretário clínico também têm família e têm de cuidar de si para poderem prestar o melhor serviço”

Chegou a ser coordenadora da USF FF Mais. O que foi mais difícil ao longo destes anos?

Assegurar aos profissionais aquilo que pediam e necessitavam. Mesmo com dificuldades e a ‘boiar’ não podíamos correr o risco de não corresponder às necessidades da população. O pior de tudo foi mesmo trabalhar com uma equipa desfalcada. Nas USF existe a obrigatoriedade de intersubstituição, mas somente por determinado período de tempo (férias, licença parental, baixa…). Cabe aos agrupamentos de centros de saúde (ACeS) fazer as contratações necessárias quando faltam pessoas, mas nem sempre foi (ou é) possível. Esta escassez de recursos humanos exige muito da equipa. Nem que sejam 5 ou 6 horas a mais por semana, vai sobrecarregar imenso cada um de nós. O médico, enfermeiro ou secretário clínico também têm família e têm de cuidar de si para poderem prestar o melhor serviço. Esta escassez de profissionais não é patente noutras regiões do país. O nosso país é pequeno, mas existem muitas assimetrias regionais. No Norte, por exemplo, as médicas que têm uma gestação de risco são substituídas por colegas que são contratadas. As más condições de trabalho acabam por levar à exaustão e ao desânimo de qualquer equipa. Vai-se perdendo o espírito inicial…

O Ministro anunciou que este ano vai abrir todas as vagas existentes em MGF. Mas nem sempre os mais novos querem ficar…

Sobretudo, nas regiões mais carenciadas como Lisboa e Vale do Tejo.

Foi Diretora do Internato Médico do ACeS Almada-Seixal. O que está em causa nessa não adesão? Somente as remunerações?

Não, embora sejam importantes. Os internos, e também os recém-especialistas, querem fixar-se num local onde tenham condições para se desenvolver como médicos de família. Têm que ser unidades onde haja recursos materiais, boas instalações, de preferência, e uma equipa multiprofissional com os recursos necessários. É importante para eles saberem que vão poder exercer Medicina, mas também querem horas para estudar, para investigar e para terem vida própria. No caso dos recém-especialistas, tendem a escolher o lugar próximo do local onde gostariam de viver, de formar família, sem descurar a componente profissional. A remuneração também é importante, obviamente, porque os ordenados não são elevados.

“É um estímulo saber que podemos contribuir para melhorar a vida dos outros, proporcionar-lhes saúde, bem-estar… O médico tem também o papel de combater as injustiças”

Os mais novos defendem cada vez mais o equilíbrio entre vida profissional e familiar. Mas há quem veja isso como negativo na área da Saúde. Concorda?

Ter qualidade de vida é essencial em qualquer profissão: ter tempo para trabalhar mas também para os filhos, para o cônjuge, para ter um hobby…Isso é fundamental na vida, para que se tenha bem-estar e saúde e, por conseguinte, condições físicas e psicológicas para se prestarem bons cuidados de saúde à população. Contudo, devo dizer que trabalhar por um ideal também é muito reconfortante. É um estímulo saber que podemos contribuir para melhorar a vida dos outros, proporcionar-lhes saúde, bem-estar… O médico tem também o papel de combater as injustiças. Como médicos de família temos a vantagem de, muitas vezes, conseguirmos ver os frutos da nossa intervenção ao longo dos anos. Tem sido muito gratificante acompanhar diferentes gerações ao longo destes 28 anos como médica de família. Não há dinheiro que pague o gosto de fazer bem às pessoas, de diminuir nem que seja um pouco o seu sofrimento e a injustiça de que por vezes são vítimas. E isso também impacta o nosso bem-estar pessoal, dá-nos outro ânimo quando nos levantamos todos os dias para ir trabalhar. Tenho 58 anos e, ao olhar para trás, é muito bom saber que tudo valeu a pena. Ser médico, e ser médico de família em particular, é poder construir um mundo melhor. A nova geração tem toda a razão em lutar por um maior equilíbrio na vida, sem dúvida; contudo, não se pode esquecer o espírito de missão. Pertenço à geração do pós 25 de Abril, que teve de levantar um país e de lutar contra muitas injustiças sociais, nomeadamente no setor da saúde. Ainda hoje me é muito cara a noção de saúde para todos… Enche-me o coração…

Daí também a sua grande luta nos últimos tempos por aqueles que não têm médico de família?

Exatamente! Tenho estado com os projetos “Via Verde Saúde”. A primeira Via Verde Saúde foi no Laranjeiro, a segunda, que estou a coordenar, é a do Seixal. A Via Verde Saúde Seixal serve os cerca de 45.000 utentes sem equipa de saúde familiar residentes no Concelho do Seixal. As consultas médicas funcionam em modelo Walk-in Clinic, ou seja, os doentes marcam, por telefone, uma consulta para o próprio dia e são atendidos. As vigilâncias de saúde (materna, infantil, planeamento familiar) e o acompanhamento de doentes crónicos complexos são partilhados entre enfermeiros especialistas e médicos. Existe uma equipa fixa de médicos, enfermeiros e administrativos, relativamente pequena, que organiza, congrega e supervisiona uma equipa maior de profissionais doutras unidades do ACES, médicos internos, médicos aposentados, médicos e enfermeiros contratados… É uma forma de dar resposta a quem não tem médico de família e precisa de cuidados.

É um problema gravíssimo! Estes cidadãos não conseguem, ou têm uma grande dificuldade, entrar no sistema de saúde português, sobretudo se não tiverem dinheiro. E maioria não tem. Face a esta realidade, e ao faltar-me 10 anos para terminar a carreira, achei que me devia dedicar a estas pessoas que não têm culpa nenhuma de não ter médico de família. Juntamente com a enfermeira Olívia Matos e com a Dr.ª Maria José Colaço, companheiras de sonhos, avançámos com a Via Verde Saúde. Destaco também o apoio desde o início do Dr. João Batalheiro, que entretanto se reformou e veio colaborar com a Via Verde, de vários jovens médicos, então internos do 4º ano, e da Direção Executiva e Conselho Clínico e Saúde do ACeS Almada-Seixal, que acreditaram neste projeto e criaram condições para que se desenvolvesse. Assim surgiram, em meados de 2021, dois serviços, um no Seixal e outro em Almada (serviços gémeos): Via Verde Saúde Seixal e Via Verde Saúde Almada, que basicamente cuidam de todos os utentes sem equipa de família, residentes na área de influência. Com este projeto não nos limitamos a prestar cuidados a uma população, muitas vezes, vulnerável. Também contribuímos para que os colegas das UCSP não tenham a enorme sobrecarga de cuidar dos utentes sem médico e se possam dedicar melhor aos utentes das suas listas.

É uma ideia que partiu da base, dos próprios profissionais de saúde. Que desafios têm enfrentado?

É verdade! Os projetos Alfa foram uma novidade, mas tinham o aval das entidades superiores. A Via Verde Saúde ainda não a tem. Já contactámos o diretor executivo do SNS e também recebemos a visita do Sr. Ministro da Saúde. Isso é positivo, mas não chega. Devia haver um aval político para dar mais força ao projeto.

O que disse o diretor executivo do SNS?

Ainda não tivemos resposta ao nosso pedido de reunião, mas penso que isso se deva ao grande volume de trabalho e solicitações que tem tido desde que tomou posse. Vamos aguardar.

“Este modelo permite disponibilizar cuidados de suficiente qualidade e dignidade a quem, no melhor dos cenários, vai ainda ter de esperar três a cinco anos para ter uma equipa de saúde familiar”

Existem receios face a este tipo de organização de cuidados, já que o objetivo de todos é dar uma equipa de família (numa USF) a todos os portugueses?

A Via Verde Saúde é apenas uma resposta temporária e de emergência, não substitui as USF. Este modelo permite disponibilizar cuidados de suficiente qualidade e dignidade a quem, no melhor dos cenários, vai ainda ter de esperar três a cinco anos para ter uma equipa de saúde familiar. Não tem sentido dizermos-lhes, como temos feito nos últimos 10 anos, que têm que esperar por um médico. E o que acontece nesse período de tempo se precisarem – e vão precisar – de cuidados de saúde? Existem, de facto, receios, mas quero deixar bem claro que a Via Verde Saúde é um projeto temporário para responder a uma emergência nacional. Tal como aconteceu durante a pandemia, quando foram criadas algumas estruturas, como os ADR, as enfermarias de retaguarda, ou os centros de vacinação. Não defendemos CSP organizados segundo este modelo, sobretudo porque não existe uma continuidade de cuidados. Quem está na Via Verde Saúde defende as USF, as equipas de saúde familiar! As de modelo B são, na minha opinião e na dos meus colegas, as que dão melhores condições… O dia mais feliz das Vias Verdes Saúde é quando fecharem as portas, porque isso será sinal de que todos os cidadãos têm uma equipa de família que lhes dá o direito de terem cuidados de qualidade, continuados e personalizados.

A situação dos nossos utentes era muito pior antes da Via Verde! Eram tratados em UCSP, onde os profissionais – que são escassos para as necessidades – tinham de dar resposta a eles e às suas listas. E tudo isto sem grandes condições de trabalho, porque os recursos humanos e materiais são escassos. Ou então eram vistos por médicos contratados por empresas que nem sequer tinham especialidade…Os enfermeiros também estavam muito sobrecarregados. Acresce ainda o facto desta população ser, na maioria das vezes, imigrante. Muitos mal falam o Português – ou nem sequer falam – e podem inclusive estar em situação irregular, sem documentos, sem um número de utente. Nestes casos estava infelizmente em vigor a chamada «lei dos cuidados inversos», que afirma que aqueles que mais necessitam de cuidados de saúde são os que menos cuidados recebem, e vice-versa. Pertencem ainda a este grupo muito vulnerável dos utentes sem médico aqueles que se deslocam dentro do país ou quem ficou sem médico de família por este se ter reformado. Não podem ficar sem resposta, porque a saúde é um direito de qualquer ser humano.

Com este projeto também diminuem a afluência às urgências hospitalares?

Sim. Está tudo interligado. Não é apenas a urgência central de adultos, mas também a pediátrica e a obstétrica. Outro aspeto importante: as crianças, as grávidas, as pessoas em geral, não precisam de cuidados apenas nas situações de doença aguda; têm de ser vacinadas, acompanhadas, investigadas atempadamente… Quando isso não acontece há repercussões gravíssimas a nível da saúde (individual e pública)! Não se ter acesso a cuidados de saúde é uma situação gritante e inadmissível! Por isso já apresentámos um Plano de Emergência à Direção Executiva do SNS para responder às necessidades de saúde de primeira linha dos utentes sem equipa de família atribuída. Permita-me repetir: este projeto deve ser limitado no tempo; não é uma alternativa às USF.

Em que consiste exatamente esse Plano de Emergência?

Temos que ser honestos: não temos capacidade de dar uma equipa de saúde familiar a todos os portugueses nos próximos 3 a 5 anos. Portanto, neste Plano, propomos constituir, nos vários locais onde há um número significativo de utentes sem médico de família (e enfermeiro de família), equipas de missão, multiprofissionais. Estas terão como função congregar e supervisionar todo um conjunto de profissionais de outras unidades de saúde para prestarem os melhores cuidados possíveis àquela população enquanto isso for necessário. Mas esta organização, que vai depender de sítio para sítio, implica inevitavelmente algum tipo de incentivo, porque senão o que vai acontecer é que estes profissionais vão ser facilmente recrutáveis para USF, para serviços privados ou mesmo para o estrangeiro. O investimento deve-se centrar nestes profissionais e não em empresas de outsourcing.

“Não consigo imaginar Portugal sem o Serviço Nacional de Saúde. Tenho lutado desde sempre pelo SNS, que foi uma conquista muito importante e justa para o país”

Relativamente à questão das urgências, na sua opinião os CSP deviam estar abertos durante o fim de semana e à noite?

Não me parece que os CSP devam estar abertos à noite, porque as urgências não são emergências. Quem tem dor de ouvidos necessita de ir ao médico, mas não precisa de ir à noite e, tendo essa possibilidade, provavelmente não o fará. A população deve usar as duas linhas de apoio: 112 para os casos emergentes e Linha Saúde 24 para os urgentes. Parece-me, porém, que os CSP devem prestar cuidados urgentes à população durante o dia, aos fins de semana e feriados, porque há situações agudas do âmbito dos CSP que não podem esperar um ou dois dias para serem tratadas.

Relativamente ao futuro, como é que vê o futuro do Serviço Nacional de Saúde, nomeadamente nos CSP?

Não consigo imaginar Portugal sem o Serviço Nacional de Saúde. Tenho lutado desde sempre pelo SNS, que foi uma conquista muito importante e justa para o país. O SNS é um património nacional que não podemos perder. Quanto aos CSP, desde a Conferência de Alma-Ata (1978), são reconhecidos como a base dos sistemas de saúde. Existe suficiente evidência científica de que o desenvolvimento harmonioso das sociedades e a saúde da população está muito dependente deste nível de cuidados. Só posso esperar e, sobretudo desejar, que o futuro do SNS seja promissor, de consolidação, modernização e desenvolvimento. Da minha parte, continuarei a dedicar-me de corpo e alma nesse sentido.

Texto: Maria João Garcia
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