Definição e relevância do problema
A incontinência anal é definida como a perda involuntária de conteúdo fecal pelo canal anal sob a forma de fezes líquidas, sólidas ou gases. A sua prevalência e o seu impacto na qualidade de vida dos doentes são significativos. O estigma que lhe está associado correlaciona-se com o número reduzido de pacientes que relatam os sintomas e que, consequentemente, realizam tratamento adequado.
A prevalência mundial da incontinência anal é de cerca de 7.7%, no entanto esta pode estar subestimada pelo estigma social associado a esta patologia que diminui a frequência com que a sintomatologia é reportada aos profissionais de saúde. A prevalência é claramente mais elevada em indivíduos com mais de 65 anos e em doentes com doença inflamatória intestinal, doença celíaca, síndrome do intestino irritável e Diabetes Mellitus. A incontinência anal é uma das patologias que mais frequentemente motiva a institucionalização de pessoas idosas e pode afetar até 25-35% dos utentes institucionalizados.
Como referido, o sentimento de vergonha e o estigma social implicam que um número considerável de doentes sofra de ansiedade e depressão associados, o que resulta num aumento da prescrição de psicofármacos. Para além disso existem elevados custos económicos diretos (relacionados com a investigação e tratamento dirigidos à patologia), assim como custos indiretos que resultam principalmente do absentismo laboral.
Classificação e etiologia da incontinência anal
A incontinência anal pode classificar-se em incontinência passiva (caracterizada pela perda imperceptível de conteúdo fecal), incontinência de urgência (vontade inadiável de defecar) e a incontinência mista (reúne características dos dois tipos anteriores).
A incontinência anal é comumente multifatorial existindo claros fatores de risco como idade avançada, diarreia, incontinência urinária, terapêutica hormonal, obesidade, antecedentes de cirurgia anorretal e de história de parto traumático. Basicamente, o compromisso de qualquer elemento envolvido na continência anal pode provocar incontinência anal. A tabela seguinte resume as causas de incontinência anal relacionando-as com o respetivo mecanismo de continência atingido.
Avaliação clínica dos doentes com incontinência anal
O primeiro passo deve ser a colheita da história clínica, complementada por exame objetivo.
A anamnese deve incluir o subtipo e a gravidade da incontinência anal (poderão ser utilizadas escalas desenvolvidas para esse efeito como a escala de Wexner e a escala Fecal Incontinence Quality of Life). Deverá ser colhida detalhadamente a história ginecológica-obstétrica, antecedentes de cirurgia anorretal, medicação habitual, características das fezes (diarreia/obstipação) e as comorbilidades (patologia neurológica, tiroideia, Diabetes Mellitus e incontinência urinária).
O exame objetivo deve incluir o exame proctológico. Na inspeção da região perianal deve investigar-se a presença de doença hemorroidária, cicatrizes, lesões cutâneas (dermatite química) e presença de prolapso retal. O toque retal pode reconhecer alterações da integridade esfincteriana e disfunção do pavimento pélvico em repouso, contração anal e durante a manobra de simulação da defecação.
Poderão utilizar-se meios complementares de diagnóstico dirigidos às causas mais prováveis. A presença de diarreia justifica realização de exames às fezes e rastreio de patologias sistémicas (DM; disfunção tiroidea). O estudo endoscópico é recomendado na suspeita de patologia inflamatória ou neoplásica. Após excluir causas secundárias de incontinência anal ou em casos refratários às medidas iniciais recomenda-se a realização de ecoendoscopia anal e/ou ressonância magnética pélvica e manometria anorretal.
A ecoendoscopia anal e a ressonância magnética pélvica avaliam a integridade anatómica enquanto que a manometria anorretal avalia a função do aparelho esfincteriano anal (pressão anal de repouso, amplitude e duração de pressão de contração, reflexo anal inibitório, limiar de sensibilidade e compliance retais).
Tratamento da incontinência anal
O tratamento desta patologia deve ser individualizado e dirigido à etiologia com o objetivo de proporcionar uma melhoria dos sintomas e da qualidade de vida dos doentes.
O tratamento inclui medidas dietéticas e de estilo de vida, tratamento farmacológico, terapêutica de reabilitação do pavimento pélvico por biofeedback, injeção de bulking agents, estimulação neurológica periférica e sagrada e cirurgia.
As medidas dietéticas e de estilo de vida são recomendadas a todos os doentes e incluem cuidados de higiene, regularização dos hábitos intestinais, hidratação oral, prática de exercício físico regular e controlo de peso.
O tratamento médico consiste na utilização de fármacos ou suplementos dietéticos ajustados às características da incontinência anal e das fezes dos doentes. Os fármacos mais estudados e mais frequentemente utilizados são os antidiarreicos como a loperamida e a colestiramina. Com o objetivo de aumentar a massa fecal poderão ainda ser utilizados suplementos dietéticos de fibras. A utilização de antidepressivos tricíclicos como a amitriptilina pode também ser benéfica, especialmente em doentes com síndrome do intestino irritável com predomínio de diarreia, já que este fármaco provou ter ação na diminuição dos movimentos intestinais diários e na amplitude da contração retal e, simultaneamente, parece também contribuir para otimizar as pressões anais de repouso e voluntária. Outros fármacos como os alfa-agonistas adrenérgicos de aplicação tópica parecem ter apenas uma ação modesta e carecem de mais e melhores estudos antes de ser recomendada a sua utilização.
A terapêutica de reabilitação do pavimento pélvico por biofeedback provou ser eficaz na regulação da função anorretal através da melhoria da força e coordenação musculares assim como da sensibilidade anorretal.
A injeção de bulking agents (ácido hialurónico) pretende aumentar o tónus do canal anal sendo uma técnica muito pouco estudada e, como tal, raramente utilizada na prática clínica.
A estimulação percutânea do nervo tibial constitui a 2.º linha de tratamento conservador e tem como objetivo neuromodular as funções rectais e dos esfíncteres anais.
A estimulação nervosa sagrada modula o reflexo somatovisceral, as aferências e os esfíncteres anais e tem indicações restritas em doentes que tiveram falência do tratamento conservador.
O tratamento cirúrgico está indicado sobretudo em doentes com defeito estrutural anatómico significativo. Existem várias técnicas cirúrgicas descritas, sendo a colostomia, o último recurso.
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