Sabemos como os tratamentos com antivirais eficazes revolucionaram o prognóstico e o destino das pessoas com hepatite C e como com terapêuticas orais se obtiveram curas, antes inimagináveis, de pacientes com doença hepática avançada. A Organização Mundial da Saúde (OMS) definiu como metas, até 2030, a redução em 90% do número de novos casos de infecção por hepatite B e hepatite C e ainda a redução da mortalidade associada a essas infecções em 65%.
O desafio – prefiro, a aposta para vencer – visando atingir estes números tem duas dimensões claras. A primeira é indispensável e visa prosseguir o rastreio. A segunda é a da referenciação a consultas de Hepatologia e a garantia do acesso ao tratamento. Num cenário importante e também preocupante. Com efeito, o número de doentes na Europa diagnosticados com carcinoma hepatocelular continua a registar crescimento: entre 1990 e 2019 esse valor quase duplicou, saltando de 26 mil para mais de 50 mil! Consistentemente estes dados são observados quer na incidência, quer na mortalidade, sendo o peso da hepatite C muito significativo neste contexto.
Em Portugal, os dados comparados no tempo, antes e depois da pandemia, causam alguma preocupação. Temos que nos sensibilizar e assumir, enquanto profissionais de saúde, a obrigatoriedade da notificação como pilar do conhecimento epidemiológico e essencial na definição de estratégias de intervenção. O número de casos confirmados de hepatite viral notificados no SINAVE evidencia a dimensão da subnotificação.
De facto, em 2019, o número de casos confirmados de hepatites B e C foi de 220 e 228, respectivamente. Ora em 2022, esses valores eram de 179 casos de hepatite B e 189 de hepatite C. E nos anos de 2020 e 2021, obviamente prejudicados pelo SARS-CoV-2, ficaram ainda mais abaixo. Do lado da mortalidade por doenças hepáticas e das vias biliares, em 2021 morreram 2806 pessoas por estas causas, o que representou 2,24% do total de óbitos em Portugal. Cerca de 45% por neoplasia maligna hepática.
Enquanto a ciência dá novos passos, seja na monitorização dos indivíduos com cirrose hepática, na descoberta de novos biomarcadores não invasivos ou desenvolvimento de inovadoras técnicas de imagem, ou de estudo e proposta de algoritmos para estratificação de risco, designadamente do risco de carcinoma hepatocelular de novo, em Portugal registou-se em 2022 um claro aumento, quer nos Cuidados Primários quer nos Hospitais, de testes para o rastreio das hepatites B e C, segundo o relatório de 2023 do Programa Nacional para as Hepatites Virais (DGS). Desses, nos cuidados de saúde primários foram prescritos 277.849 testes para a hepatite B e 202.778 para pesquisa da hepatite C, representando um crescimento de 15% e 17%, respectivamente, em relação a 2021.
Nos hospitais foram requisitados 267.071 testes para a hepatite B e 249.102 testes para a C, um aumento de 21% e de 27% no número de testes quando comparados com o ano anterior. E o número de tratamentos autorizados para a hepatite C também subiu em relação ao anterior a 2021. Recorde-se que, desde 2015, ano em que o então Ministro da Saúde e o INFARMED assinou um acordo com a indústria farmacêutica, foram autorizados 32.163 tratamentos (dados até final de 2022). Valeu a pena e do que se apurou a taxa de cura está acima dos 94%.
Ou seja, felizmente o dever médico de fazer activamente o rastreio, crucial para a detecção precoce da infecção e diagnóstico atempado, ganha adeptos e seguidores. Uma palavra para o trabalho e dedicação de organizações não-governamentais ou de base comunitária e de áreas diversas que procuram divulgar e, muitas vezes, promover o rastreio através de testes de diagnóstico.
As hepatites B a C, em particular, poderiam ter sido mais uma tragédia na história da Humanidade. O trabalho dos cientistas e investigadores levou, primeiro, ao estudo e conhecimento do vírus e, depois, à busca de uma resposta eficaz e segura. O que poderia ter sido mais uma desgraça na defesa da vida teve uma história diferente e de sucesso, honrando a memória dos que faleceram e de quantos contribuíram para a sua re-escrita! É a história da Hepatite C.
*O autor escreve segundo o A.A.O
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