Primeiro, a acusação

Miguel Sousa Tavares (MST), no primeiro parágrafo do seu artigo, acusa os judeus atuais de traírem os judeus fundadores de Israel: "Estes não são os que fundaram o Estado de Israel que, não obstante as divergências políticas cedo ligadas à sua fundação, o mundo se habituou a admirar ou a invejar. Não: estes são os seus filhos, netos ou bisnetos. E o que eles fizeram e fazem com a herança recebida foi traí-la”.

No segundo parágrafo, inclui os judeus fundadores de Israel na mesma categoria dos judeus traidores. Os filhos, netos ou bisnetos são afinal iguais aos pais, avós ou bisavós:

"Setenta anos de desobediência arrogante a resoluções do Conselho de Segurança da ONU, de ocupação sistemática e planeada, de terras roubadas aos palestinianos na Cisjordânia (...) de abusos de toda a ordem sobre os palestinianos, de paulatina expulsão dos palestinianos de Jerusalém, de transformação de Gaza no maior campo de concentração do mundo (...) conduziram àquilo que Guterres disse, com toda a razão, serem os antecedentes do 7 de Outubro”.

Os filhos, os netos e os bisnetos são afinal iguais aos seus pais, avós e bisavós, tendo aqueles traído a herança de 70 anos de ocupação, roubo, abusos e campos de concentração destes.

Dois parágrafos. Foi o bastante. MST, tendo decidido que a sua ignorância sobre o assunto jamais o impediria de falar sobre o mesmo, não foi capaz de escrever dois parágrafos sem que um fosse a negação lógica do outro.

O que a muitos antissemitas sem talento levaria talvez um livro inteiro a exibir, o talento literário de MST conseguiu-o em apenas dois parágrafos.

Depois, a inversão

MST não se limita à recorrente equivalência moral entre os judeus e os terroristas do Hamas. MST opera uma total inversão: não apenas os judeus são os novos nazis como o Hamas são os novos “resistentes judaicos no gueto de Varsóvia”. Gaza é campo de concentração e gueto de Varsóvia num só. Segundo a brilhante tese de MST, para quem os defensores de Israel fazem “chantagem moral” com a acusação de nazismo, os judeus são os únicos a quem se pode chamar de nazis.

Depois de um chorrilho (nem sequer original) de associações dos judeus aos nazis, MST conclui que chamar nazis a quem critica os judeus não é sério. Nazis, só mesmos os judeus. MST é obviamente um ignorante na história do conflito; só lhe resta mesmo recorrer à própria história dos judeus e virá-la, por meio de algumas referências dolorosas, contra eles mesmos. Fiel ao seu público-alvo.

Finalmente, a indecência

“Acabou-se a fatura do Holocausto”. MST julga, com esta sentença, estar a absolver os europeus. Está, na verdade, a absolver o Hamas e, fundamentalmente, a absolver Hitler. Usar os judeus mortos pelos nazis para nazificar os judeus vivos, que combatem para não serem mortos pelos novos nazis não diz nada sobre a traição de Israel, mas diz muito sobre o nível de indecência de MST.

A vitória póstuma de Hitler, a acontecer um dia, dever-se-á em grande medida aos carteiristas da memória como MST. É por isso natural que MST acabe a absolver Hitler: era no aparecimento futuro de pessoas como MST que Hitler apostava. E pelo menos nisso não errou.

Quando por vezes olhamos para trás e nos perguntamos “Que cristão teria sido eu no tempo em que a Inquisição: queimava judeus?”, “Que francês teria sido eu no tempo em que Dreyfus era acusado?”, “Que alemão teria sido eu quando os judeus eram perseguidos e gaseados?”, MST deu-nos de si mesmo uma resposta sucinta e clara: agora sabemos que tipo de cristão, que tipo de francês, que tipo de alemão teria sido.

Presidente da Associação Lusa – Portugueses por Israel